A Pamonhada
Meu pai vislumbrava em qualquer pamonha de boteco uma pamonhada...
Tenho certeza de que ao abrir uma, ele viajava como hoje se fala, na maionese... “Viajava na pamonha”. Sei o sabor que ele sentia escolhendo as espigas quase que sofregamente contando: um atilho, dois atilhos. Uma mão, um jacá... Naquele tempo, havia pamonhadas de um carro de boi. Que eram quarenta jacás! Colhida no dia anterior, a montanha de milho ficava ali perto do curral à espera da madrugada. Quando o dia raiava, tudo estava pronto para a grande celebração. As mulheres de algum modo ficavam diferentes. Tinham lenço bonito na cabeça, cantarolavam para aqui e ali. E cada ser tinha função, fosse o que fosse. O bobo ou a boba, as crianças, os velhos e até as visitas!
Nessas ocasiões, numa roda de pamonhada até podia um peão garboso se sentar de frente a uma senhorinha... As crianças eram liberadas e aturavam-se a chatice, tagarelice ou fuxicagem de alguma vizinha inconveniente!
Evidente que de olho na coisa maior, que eram as tachas borbulhando lá pelo meio da tarde, ninguém ia se ocupar de querelas ou inconveniências. Engraçado é que na pamonhada é servido o café da manhã, quitandas, doces, etc. e o almoço. Almoço que no mais das vezes é especial, com galinhada!
Como ia dizendo, lá pelo meio da tarde a rainha da festa, a pamonha, começava a ser pescada das tachas cobertas com folhas de bananeiras, e exalando vapores perfumados que criavam efeitos visuais na contra-luz dos fogões.
Aberto o serviço, era um festival de sabores. As com lingüiça, com queijo, com pimenta, de doce, com nata, com creme, etc.
Lembro-me até hoje de ataques de queimação que alguns exagerados sofriam nas madrugadas pós pamonhada.
Do monte de milho extrai-se material para fazer uma gama quase infinita de receitas, muitas das quais bem populares: curau, angu, bolinho frito, milho refogado, cozido, assado, etc.
Mas o que mais me impressiona na pamonhada é o social. A distribuição das funções coloca cada um no seu lugar e a auto estima é nivelada em grupo no seu mais alto grau. Dá-se aí a catarse do mutirão.
Exemplos de funções:
Escolher e quebrar o milho na roça e transportá-lo: função de homens comandados pelo dono da casa.
Cortar as espigas na base do talo com facão: função de homens – as crianças são mantidas a distância nessa etapa.
Descascar as espigas e selecionar as palhas: função nobre, geralmente comandada pela dona da casa. É de alta responsabilidade, pois será mais ou menos trabalhoso o acabamento das pamonhas, que depende do critério com que foram escolhidas as palhas.
Limpeza: função do bobo e da boba e voluntários.
Fritar linguiças, torresmos, bolinhos, etc.: função da dona da casa e voluntárias amigas.
Catar: função de criança – com supervisão de adulto – que com seus dedos miúdos e visão aguçada catam fundo os cabelos nas gretas das espigas.
Selecionar: função de quem entende a grana da espiga e suas várias destinações. As mais tenras para assar, as médias para refogar e para a massa, e as mais duras para o angu e o curau...
Ralar: função de todos, preferencialmente de homens voluntários.
Limpeza dos sabugos: função simultânea com a da ralação
Temperar: função exclusiva da dona da casa, que concede a honra de ser acompanhada por amigas chegadas.
Acabamento: esta função exige trabalho em grupo de duas ou mais pessoas. Fazer o copo com a palha, encher, cobrir com outra palha, dobrar e amarrar. Os amarrilhos são atados de modo a identificar a pamonha, se de sal, de doce, com pimenta ou lingüiça, etc. São feitos de embira de bananeira ou palhas secas, amaciadas na água e desfiadas.
Cozimento e serviço: depois de duas horas de cozimento, começa o serviço em que todos comem. Após o que há uma distribuição de “cotas” a quem participou e cada um volta para casa de capanga cheia e a alma limpa de quem tem certeza de ter feito a coisa certa mais uma vez.